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Novas vítimas, velhos problemas: até quando as mulheres vão morrer apenas por sua condição de gênero?

Maria Carolina Santos / 08/03/2021

Por volta das 11h do dia 30 de janeiro deste ano, Joelson Souza ligou para uma tia da esposa. Contou que a mulher estava indo embora, mas que não se preocupasse. Tudo estava bem. Há dois anos, a farmacêutica pernambucana Jéssica Mesquita se mudou do Recife para Belém porque havia passado em um concurso público e Joelson, reservista da Aeronáutica, foi com ela. Mas há pelo menos um ano Jéssica contava para a família que queria se separar. O marido era contra, dizia que não viveria sem Jéssica. Angustiada, ela tinha decidido voltar para casa e abandonar o emprego em um hospital universitário federal.

A preocupação tinha motivo: Joelson já havia dito repetidas vezes que iria tirar a própria vida se ela o deixasse. Jéssica tinha passagem comprada de volta para Recife no dia 12 de fevereiro. Até lá, ficaria na casa de uma amiga, Tamires Abdon, que conheceu no trabalho. Pouco mais de uma hora depois da ligação, Joelson teria a frieza de escrever na parede com o sangue de Jéssica e Tamires. Matou as duas com golpes de faca. Mesmo não tendo cometido um crime militar, segue em um alojamento da Força Aérea Brasileira em Belém (PA). A família clama por justiça.

Joelson o assassino de Jéssica e Tamires

As mortes de Jéssica e Tamires foram registradas nos primeiros dias de 2021, como prenúncio do pesadelo da violência de gênero que está longe de acabar. Elas engrossam as terríveis estatísticas de feminicídio – crimes de ódio que tiram a vida das mulheres – no Brasil. Em 2020, ano do início da pandemia do novo coronavírus, uma mulher foi morta a cada oito horas. Os dados desta reportagem foram levantados pelo monitoramento “Um vírus e duas guerras“, um esforço conjunto de sete veículos de jornalismo independente nacionais (Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Ponte Jornalismo e Portal Catarinas) para mapear a evolução da violência contra a mulher durante a pandemia no país.

Esta é a segunda vez que a Marco Zero participa do trabalho, responsável pelo monitoramento da violência de gênero em quatro estados: Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. No primeiro levantamento, além dos dados referentes aos meses de maio, junho, julho e agosto, contamos como estavam sendo realizados os atendimentos às mulheres vítimas de violência nos momentos mais rígidos do isolamento social, como o estado falhava em garantir este atendimento e como as mulheres, sozinhas, estavam se organizando para cuidar umas das outras, especialmente nas periferias.

Desta vez, além dos dados referentes aos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2020, damos nome e rosto às vítimas, contamos como a imprensa e a polícia tratam a violência de gênero, como as mulheres trans estão ainda mais vulneráveis e alertamos para o futuro ainda mais perigoso para as mulheres em um país assolado pela pandemia, pela crise econômica e pela liberação de mais armas em circulação no território nacional.

Pernambuco em alerta: estado lidera aumento de feminicídios no NE

Em 2020, de acordo com as estatísticas oficiais fornecidas pela Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS-PE), Pernambuco registrou 75 casos tipificados como feminicídio: um aumento de 32% em relação a 2019, quando 57 mulheres perderam suas vidas nas mesmas condições. Os números, no entanto, correm o risco de estarem subnotificados, uma vez que muitos crimes que se enquadram nesta tipificação não são classificados como feminicídio pelas autoridades responsáveis. No levantamento Um vírus, duas guerras, foi o terceiro estado com maior crescimento entre os 25 pesquisados, perdendo apenas para o Mato Grosso e Pará (aumento de 44%) e o primeiro da região Nordeste. Os meses de dezembro, setembro e abril no Estado empatam com o maior número de mortes: 9 em cada mês.

Nos últimos quatro meses de 2020, foram 30 feminicídios. Em relação aos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs), foram registrados mais 55 casos contra mulheres no período. De setembro a dezembro de 2019 foram 44. Um aumento significativo de 25%. Quanto ao perfil das vítimas, a SDS-PE dispõe das variáveis “faixa etária e cor da pele” somente para os crimes de feminicídio. Quando se trata sobre violência doméstica ou CVLI contra mulheres, estes dados não estão disponíveis, de acordo com a secretaria.

É importante pontuar, no entanto, que o aumento da violência de gênero no estado é mais uma face do aumento generalizado da criminalidade em Pernambuco. No ano em que a pandemia da covid-19 fez mais de dez mil vítimas fatais por aqui, os crimes contra a vida em geral cresceram. Os homicídios, de todos os gêneros, subiram de 3.469 em 2019 para 3.759 no ano passado, um aumento de 8,4%.

Demais estados – Entre os estados monitorados pela Marco Zero neste levantamento, o Rio Grande do Norte foi o que mais detalhou os dados informados no último quadrimestre de 2020. O estado enviou uma planilha com os 33 assassinatos de mulheres (apenas quatro tipificados como feminicídios) nos meses levantados, constando informações sobre idade, ocupação, escolaridade, raça, localidade do crime, meio empregado e tipo de morte. Este tipo de metodologia e organização é fundamental não apenas para atender a pedidos da imprensa, mas para fornecer às autoridades dados que orientem ações governamentais, prestação de serviços à sociedade e políticas públicas em geral.

As vítimas de feminicídio entre setembro e dezembro foram uma comerciante de 23 anos, branca, solteira, com ensino médio, em São Miguel do Gostoso, morta por arma de fogo; uma mulher sem profissão de 30 anos, parda, em uma união consensual, de escolaridade ignorada, morta por espancamento em Santa Cruz; uma mulher sem profissão de 36 anos, parda, com ensino fundamental incompleto, assassinada por asfixia mecânica em Angicos e uma enfermeira 29 anos, solteira, parda, com ensino superior, morta por arma de fogo em Natal.

A Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminais do Rio Grande do Norte ainda elaborou um relatório estatístico sobre a violência doméstica no estado nos meses solicitados. O relatório mostra que o registro de violência doméstica teve aumento de 41,7% quando comparado com o mesmo período de 2019, reforçando o argumento de diversas entidades da sociedade civil que trabalharam com a perspectiva de que o confinamento necessário para conter a disseminação do novo corona vírus deixou as mulheres ainda mais vulneráveis à violência dentro de casa.

O rigor da coleta de dados no RN revela, por exemplo, que mulheres de todas as raças sentiram o aumento da violência, mas as diferenças estão nos percentuais: negras tiveram um aumento de 175% no recorte de lesão corporal, comparado com 2019. As brancas, de 56,1%. Quando falamos da profissão, houve um aumento de 239% no registro de violência doméstica contra agricultoras. No ano de 2020, foram 12 mulheres vítimas de feminicídio, de acordo com os números oficiais. Um decréscimo de 43% quando comparado com o ano anterior.

O estado de Alagoas publica mensalmente um boletim com os casos de violência. Há dados desde 2012. Os mais recentes mostram os CVLI são divididos por faixa etária, sexo e raça. Há estatísticas por tipo de instrumento usado, ambiente e dia da semana quando ocorreu o crime. Os feminicídios, porém, não são categorizados. Em Alagoas, 34 mulheres foram mortas em crimes de feminicídio ao longo de 2020. Uma diminuição de 23% em relação a 2019.

Foi na Paraíba que encontramos a maior dificuldade em conseguir os dados. As assessorias de comunicação da Polícia Civil e da Secretaria de Defesa Social afirmaram por repetidas vezes não dispor dos números solicitados. Indicaram o site da secretaria, onde estão publicados os boletins anuais da violência no estado. Em 2019, a publicação traz os dados de feminicídio mês a mês. O mesmo não aconteceu em 2020, quando só foi publicizado o número anual: 36 casos.

Ao mesmo tempo, demos entrada no Sistema de Informações ao Cidadão (SIC) solicitando os dados de feminicídio e homicídios de mulheres no dia 03 de fevereiro. A resposta veio oito dias depois, mas não era bem uma resposta, mas uma mensagem orientando que as informações seriam enviadas posteriormente por e-mail. O e-mail chegou no dia 19 de fevereiro. Veio incompleto, apenas com dados gerais de violência doméstica. Nada de feminicídio ou de homicídio de mulheres, nem perfis das vítimas, como havia sido solicitado. No dia 24 de fevereiro, por orientação do Serviço de Informação ao Cidadão – SIC/SESDS, fizemos um novo pedido de informação na plataforma. A resposta finalmente chegou na quinta-feira passada, um mês após o pedido inicial: foram 16 feminicídios entre setembro e dezembro no estado.

Vamos, então, aos dados gerais de violência doméstica na Paraíba enviados pelo SIC: foram 1.674 ocorrências entre setembro e dezembro de 2019. E 1775 no mesmo período em 2020. Um aumento de 6%.

A importância dos dados

“Os números não são para a gente olhar para eles e dizer ‘ah, tadinhas! tantas mulheres morrendo’. Os números têm uma função: indicar caminhos para as políticas públicas”, diz a cientista social e coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) Edna Jatobá.

Ela cita um recorte emblemático para a necessidade de se ter um perfil mais completo para a elaboração das políticas sociais contra a violência doméstica e o feminicídio. “Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2008 a 2018, houve redução nos homicídios contra mulheres não negras de 11%. E, no mesmo período, houve um aumento de 12% no homicídio de mulheres negras. Sem esse dado racial, não seria possível saber disso. E, a partir daí, criar políticas que atinjam especificamente essas mulheres”, afirma.

A cientista social também faz parte da Rede de Observatórios de Segurança, que registrou mais feminicídios em 2020 do que o que os dados oficiais mostram: 5 casos por dia. E Pernambuco ocupa o segundo lugar entre os cinco estados analisados: Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

Os dados foram reunidos no relatório “A dor e a luta das mulheres”. Foi pela imprensa que os números foram levantados. Assim, houve incongruências em três estados. Em Pernambuco, foram encontrados 82 casos de feminicídio. Os dados oficiais – que são a fonte deste monitoramento Um vírus, duas guerras – indicam 75. A diferença pode estar na metodologia. “Sem julgamentos, mas ainda estamos evoluindo junto com as forças do estado, e não só Pernambuco, para qualificar de maneira correta uma lei de 2015, que ainda é muito nova. Temos que ficar atentos aos enquadramentos desta lei, para chamar atenção para os casos que os dados oficiais deixaram de fora”, explica.


Sofre ou conhece alguém que sofre de violência doméstica? Pelo número 180 é possível registrar a denúncia e receber orientações sobre locais de atendimento mais próximos. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com